domingo, 17 de janeiro de 2010

A SÉDE DA ALMA

SEDE DA ALMA



Alberto, um anatomista de Bonn, dissecou cérebros de pessoas que se haviam entregado a trabalhos intelectuais durante alguns anos, e achou em todos uma substância muito consistente e a massa parda, bem como os sulcos, assaz desenvolvidos. Se, por outro lado, observamos com Spurzein, Gall e Laváter, que a cultura das faculdades superiores do espírito se nos imprime no crânio e no semblante; se visitarmos o Museu de Antropologia de Paris e notarmos, através da coleção de crânios do abade Frère, que os progressos da Civilização redundaram na elevação da parte anterior e na depressão da occipital, poderemos tirar destes fatos uma conclusão diametralmente oposta à dos adversários, para afirmar que o pensamento rege a substância cerebral.


Não temos aí, claro como o dia, o trabalho do espírito sobre a matéria? E as conclusões não derivam de si mesmas para abrir passagem triunfal à nossa doutrina? A propósito de conclusões, não podemos eximir-nos de admirar a facilidade com que se pode tirar dos mesmos fatos conclusões inteiramente contrárias: tudo depende da disposição de espírito e haveria que desesperar dos progressos da teoria, se a maioria dos homens tivesse o caráter mal formado. Verificariam, por exemplo, em experiências com alienados, que alguns haviam recuperado a consciência e a razão pouco antes de morrer.


Concluíram os espiritualistas que as almas desses infelizes voltavam, após longo isolamento, ao conhecimento de si mesmas e ao predomínio do corpo, sendo-lhes permitido, nesse transe supremo, abrirem os olhos da consciência ao passarem desta para a outra vida. Os materialistas, ao invés, aproveitaram o fato pró domo sua, alegando que a aproximação da morte liberta o cérebro das influências tórpidas e mórbidas do corpo. Mais do que se imagina, a própria Anatomia fisiológica se embaraça, no concernente à loucura em relação com o estado do cérebro.


Enquanto uns, como os citados, muito vêem; outros, não menos hábeis, nada encontram. Assim, o alienista Leuret declara que nenhuma alteração cerebral se encontra, senão nos casos em que a demência é precedida de qualquer outra enfermidade, e que essas alterações são tão variáveis e diferentes que não autorizam apresentadas, afirmativamente, como verdadeiras causas. Assim também, a propósito das anfratuosidades há pouco referidas, poder-se-ia não ver mais que efeitos. Quando nossos adversários acrescentam que os casos de demência protestam contra a existência da alma, não estão melhor aparelhados para defender o seu sistema. Duas hipóteses se apresentam para explicar a loucura. Ou há, ou não há uma lesão no cérebro.


No primeiro caso, a falha do instrumento não demonstra a inexistência do artista; e, no segundo, o problema fica pertencendo à ordem mental. Melhor ainda: o primeiro caso pode enquadrar-se no segundo, se admitirmos, qual sugere a experiência, que a loucura — seja a causada por uma dor súbita, por um grande susto ou por desesperação profunda — tem, em todos estes casos, sua fonte no ser mental, que reage contra o estado normal do cérebro e lhe acarreta qualquer alteração. Ainda aqui, é evidente, que quem sofre é o ser pensante, a determinar no organismo um distúrbio correspondente ao sofrimento. E de fato, tem-se verificado que as alterações só se encontram nas loucuras antigas, com se o espírito aí fora o que é por toda a parte — o movimentador da substância.


Por outro lado, enquanto os adversários deduzem da descrição anatômica do cérebro que a faculdade de pensar não é mais que propriedade de movimentos do conjunto, nós vemos, na multiplicidade mesma desses movimentos, uma submissão do cérebro à grande lei da divisão do trabalho, por dar a cada órgão a sua função, de acordo com a respectiva situação, estrutura, composição, forma, peso, tamanho. Vemos, nessa variedade de efeitos, um argumento a prol da independência da alma, de vez que a hipótese desses fisiologistas não pode, de maneira alguma, conciliar uma tal complexidade dinâmica do cérebro com a simplicidade necessária e reconhecida, do ser intelectual. Falaremos, daqui a pouco, especialmente da simplicidade do ser pensante, pois que nos resta algo dizer ainda, sobre as relações de cérebro e alma.


As comparações de crânios encontrados em antigos cemitérios de Paris, desde quando o prefeito de Napoleão III promoveu a remodelação da cidade, e, em particular, a diferença entre crânios das valas comuns e dos túmulos particulares, estabeleceram novamente que os indivíduos votados às ciências e artes possuem uma capacidade cerebral maior que a dos simples operários. As mesmas escavações revelaram que a capacidade craniana dos parisienses aumentara, de Filipe-Augusto para cá. A capacidade craniana do negro livre é maior que a do escravo. Eis um fato significativo que poderia (em dada circunstância) ser invocado a favor da liberdade.






Tendo provas de que as impressões exteriores influem no pensamento, temo-las por igual de que o pensamento domina os próprios sentidos. Quantas criaturas não vemos por aí, cujo cérebro e cujo corpo padecem enfermidade lenta e rebelde, arrostando uma existência de misérias e dores e conservando, sem embargo, fortaleza de ânimo, e guardando a flor da virtude, sobranceiras à torrente de lodo que as arrasta, e vencendo pela grandeza do caráter os elos da adversidade? Negaríeis, também, que haja dores morais que residem, lacerantes, nas profundezas insondáveis da alma?


— Dores íntimas, não causadas por acidentes físicos, nem por enfermidade exterior, nem por alteração do cérebro, mas, tão só, por uma causa incorpórea, qual a perda de um pai, a morte de um filho, a infidelidade de um ente amado, a ingratidão de um protegido, a traição de um amigo; ou ainda pelo quadro de um infortúnio, pela derrota de uma causa justa, pelo contágio de idéias malsãs; por multidão de causas, enfim, que nada têm de comum com o mundo da matéria e não se medem geométrica e quimicamente, mas constituem o domínio do mundo intelectual?


Não vemos assim, mesmo sob o seu aspecto físico, a influência do espírito sobre o corpo? As paixões refletem-se no semblante. Se empalidecemos de medo, é que este sentimento, manifestando-se por um movimento do cérebro, retrai os vasos capilares da face. Se a cólera ou a vergonha purpureiam-nos o rosto, é que os movimentos engendrados dilatam os ditos vasos, conforme o indivíduo. Mas aqui, é ainda o espírito que desempenha o principal papel. Se alguma vez corastes à impressão subitânea de um olhar feminino (não há desdouro em confessá-lo), não sentistes que a indiscreta impressão se transmitia ao cérebro por intermédio dos olhos e daí descia ao coração para remontar ao rosto?


Procurai analisar essa sucessão, e mesmo que não coreis tomado de qualquer súbito temor, aplicai a mesma análise e concluireis que, sem o quererdes, as impressões vos passam céleres pela mente, antes que se traduzam exteriormente. O mesmo se verifica com os sentimentos; é no peito e não na cabeça que uma inexprimível sensação de plenitude ou de vácuo se manifesta, quando, em certas horas de melancolia, o pensamento se nos desprende e voa para o ser amado, Mas, como essa sensação não se produz senão depois de pensarmos, é evidente que, ainda aqui, o espírito representa o papel primacial. Sob outros aspectos, um súbito terror se comunica ao coração e acelera ou retarda o pulso, podendo mesmo -paralisá-lo numa síncope.


A tristeza e a alegria produzem lágrimas. O trabalho mental fatiga o cérebro, o sangue se empobrece, a fome se faz sentir. Todas estas, e grande número de observações outras, induzem-nos a crer que o pensamento, ser imaterial, tem sede no cérebro, o qual lhe serve tanto para receber os despachos do mundo exterior como para levar-lhe suas ordens. E de resto, nós já sabemos que o cérebro e a medula mais não são que poderosos feixes de fibras nervosas, nervos que partem desse veio, irradiando em todos os sentidos para a superfície do corpo, e nos quais existe uma corrente análoga à corrente elétrica. Os nervos são fios telegráficos que transmitem à consciência as impressões do interior, enquanto os músculos executam as ordens do cérebro.





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